Um homem e as palavras – parte I

Um homem que passou a vida em companhia das palavras. Ele gostava delas, conhecia seu poder e explorava o que podia do verbo. Não foi um poeta no sentido estrito do termo, mas fez poesia, e eu tenho em mãos algumas delas, coisas que ninguém jamais leu, ou alguém aqui e acolá numa carta irresponsável de amor. Na capa amarelada do caderno de poesia que ele confiou inocentemente a mim (eu me pergunto se aquele homem foi inocente ou eu é que estou sendo ao afirmar tal barbaridade; chego a acreditar que ele sabia que seu caderno estaria guardado em boas mãos)… como eu dizia, na capa, ele escreveu:

“Aqui resolvi deixar algo que,
no futuro, dirá a todos como,
realmente, eu sou.
Tudo quando está neste ca-
derno é o que, efetivamente,
penso e sinto.
Assim, sou eu!”

Talvez este futuro a que ele se referia nas primeiras linhas esteja começando. O que ele realmente foi eu ainda estou descobrindo. Um homem da lei, um homem das mulheres, um homem das palavras difíceis, um homem da sedução, um homem teimoso. O que mais deste homem? O gosto pelo futebol talvez, a preguiça de caminhar, as promessas não cumpridas, o jeito atropelado de tocar a vida? Tudo junto.  Nas poesias que estão no caderno velho, não sei de quem ele fala, nem para quem ele fala, não me permito sequer cogitar, porém não deixo de lhe admirar as palavras.

“Mulheres, mulheres, vós sois
A causa deste penar, inclemente,
Dormir…Sonhar…Morrer…Depois!” (1950)

Que penar seria este tão inclemente? A esta pergunta ele sorriria sem nada dizer. Fez isso tantas vezes.

“Se, de novo, eu pudesse te ver,
Como sempre, ao menos, sentir
A felicidade do teu querer,
O sofrimento do teu partir…

Se, de novo, eu pudesse afogar
Como sempre, as minhas dores
Em teu meigo e terno olhar,
Verdes mares, de imensos amores…

Seria um nunca mais acabar,
De felizes e raras sensações
De quem sempre há de te amar,

Tirando dos espinhos, as flores,
Tornando um só, dois corações,
Fazendo de dois, um único olhar! (23/01/78)

E por versos, estrofes e outras sentenças bem menos poéticas, ele foi percorrendo a trilha dos significados, encontrando aqui e ali uma palavra que pudesse traduzir o que quer que fosse. Nada mais se pode esperar de um homem que lia dicionário para escolher meticulosamente as palavras de efeito para uma aula que pretendia ministrar ou um sentença que pudesse encabular outros doutores da lei.

Sem dúvida, foi vítima das palavras, e elas mesmas, sem piedade, acabaram com seus sonhos, despedaçaram conquistas, criaram mágoas, deixaram alguém em algum lugar estupefato. Se ele as escolhia com tanto critério, não usava de cautela para proferi-las, eis seu maior pecado.  Será mesmo possível conhecer este homem pelas palavras? Sim, ele e todos os outros.  Onde quer que ele esteja agora, sei que seu maior trunfo são elas, as palavras.

Palavras, palavras, sempre as palavras. Este homem me faz crer que a verdade das palavras é momentânea,  quero dizer, elas são verdadeiras enquanto durar a verdade, depois se tornam palavras sem verdade, palavras sem nada.

“Que será que você quer?
Será que quer amar?
Ou será que pretende brincar,
Como se não fora uma mulher?”

Quem será esta mulher? Pouco importa, ela entrou para o rol das coisas que perderam o sentido, perderam a importância. Que bom que ficaram as palavras; as palavras e mais nada.

Saudade de um homem que arriscou seus versos e deixou um caderno amarelado de poesia … eis a minha herança!