A dor de Jordana

Eram os ouvidos que doíam em Jordana. Era como se eles quisessem dilacerar sua cabeça. E mesmo assim a mulher teimava em ouvir tudo do seu jeito, não era tolerante, não se dava ao trabalho de escutar quem quer que se aproximasse dela. Nunca, nunca ela tinha tempo, paciência ou interesse para ouvir as lamúrias e até mesmo as trivialidades de alguém porque só seus próprios assuntos eram urgentes. Agora quem reclamava disso eram seus ouvidos. E como doíam. Eles tentavam avisar Joanna que não queriam mais ouvi-la com exclusividade, que ela os deixasse em paz, libertos para o mundo.

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A loja de sapatos

O cenário é um movimentado shopping center de São Paulo. Manhã de um sábado do mês de julho – mês de férias escolares de inverno com temperaturas que invejam o verão – corredores vazios à espera da clientela que anda sumida e eu olhando vitrines sem graça. Incrível como as vitrines das lojas são repetitivas, cansativas, nada originais, tudo tão igual a sempre, previsível e caro. Qualquer peça anda pela hora da morte, e penso que os lojistas devem estar realmente tranquilos na vida de suporem um boa féria no final do dia. Talvez seja eu a desajustada no cenário econômico, possivelmente, e tudo anda às mil maravilhas. Seja como for, as vitrines seguem chatas, enfadonhas, nada convidativas. Umas são tão cheias de cores sem critérios e preços afixados em parcelas somente, que confundem qualquer aspirante a comprador – definitivamente se não tiver sido bom aluno em cálculos, desista. Outras, elegantes, escondem os valores em microplaquinhas em que se leem números que são códigos indecifráveis, pois o preço mesmo você só fica sabendo se entrar na loja. Aí é um problema porque existem vendedoras e vendedores não estão dispostos a informar preços, querem mesmo vender. Imagine uma pessoa entrar só para perguntar quanto custa e sair sem comprar! Esse é um critério comum em um bocado de lugares – não todos, obviamente – que classificam os compradores em bons ou maus, dignos ou indignos. Já recebi olhares reprovadores de tantos desses funcionários do comércio, que perdi a conta, o que nem de longe me abala, muito pelo contrário. 
Foi por ocasião de uma desinformação desse tipo que o evento se deu. Uma loja de calçados grande, bem iluminada, anunciando em inglês com adesivos enormes a redução de 50% nos preços, porém não havia preços. Parei olhando aquele monte se sapatos iguais aos da loja anterior, sem prestar atenção em nenhum deles, e meu olhar foi imediatamente atraído para uma mulher entusiasmada que se achegou perto de mim, falando com ninguém – estava desacompanhada – “humm, estão liquidando”. Foi indo sem olhar a vitrine cansativa. A pessoa entrou na loja de sapatos, olhou, olhou, pegou um ou outro par na mão, massageou o material, talvez para conferir se era macio, virou as costas e se foi, deixando para trás um discreto ar de reprovação. Ela continuava falando com ninguém, só que agora visivelmente desapontada, não escutei o que dizia. Eu quis tanto perguntar o que ela achou da tal liquidação, do toque nos sapatos, enfim, qualquer coisa, mas nem deu tempo, saiu resoluta. A loja perdeu a cliente ávida por aproveitar as promoções sabe-se lá por que, e ficou cheia de vendedoras à esperada de uma venda. Desisti também e fui embora salvar o que restava da minha manhã, sem vitrines, sem liquidações . 

Danielle Arantes Giannini

Inconstância

Sua vida é conduzida por mim,
Decido quem você é hoje
E quem será amanhã
Você não me controla nem me cala
Sou indomável
Meu nome é inconstância
Sou eu quem faz sua rotina ser uma hoje
E outra amanhã
Movimento seus pensamentos
Transformo seus sentimentos
E o transformo em humano
Sou a mudança
Sou o nunca e o sempre
Sem controle nem previsão
Nada me intimida
Porque não sou fórmula fixa
Sou ação
Minha missão é transformar você
E mudar todas as coisas da vida
E todas as coisas do mundo
Estou aqui para cortar suas amarras
Quero arrombar o cadeado do apego
Para libertá-lo da dor
Não adianta lutar contra mim
Eu sou a vida
Vim para abalar suas convicções
Semear a dúvida
Deixar uma cisma em você
E depois me alegrarei com sua transformação
Você não se livrará de mim
Nem mesmo depois de cerrar os olhos
Porque também sou a impermanência
E onde você estiver,
Lá eu estarei.
Venha cá, segure minha mão,
Caminhe comigo
Vou lhe ensinar o que é liberdade
Estaremos juntos até na eternidade
Não se atrase chamando os doutores,
Sábios e entendidos
Eles também seguem as minhas leis
Porque você, os doutores, os sábios, os entendidos
E os ignorantes
São todos meus tutelados
Nada os distingue
Nem títulos,
Nem moedas,
Absolutamente nada
Sou a mesma para o rico e para o pobre
Estou no caminho do justo e do injusto
Mas hoje eu quero você
Vim me apresentar
Não lhe farei mal algum
Confie em mim
E encontrará o caminho que leva a você mesmo
Você nada pode se não for através de mim
Sou a força que rege a natureza
Faço surgirem estrelas, planetas
Sóis de todas as grandezas
Provoco chuvas e mexo na superfície do solo
Componho músicas com o vento
Moldo ondas perfeitas e imperfeitas
Acredita agora que você nada será sem mim?
Então aceite meu convite
Caminhe comigo nessa tarde de sol
Amanhã andaremos pela chuva
E depois lhe trago um pouco de brisa
Se quiser, pinto um arco-íris para você admirar
Só não me peça para ficar parado
Porque sou a inconstância
E vou levá-lo para onde eu for!

Danielle Arantes Giannini 
Texto publicado originalmente em https://vivenciaseganhos.wordpress.com em 8 de dezembro de 2018

Joanna decide tomar café

Eram tantos e desencontrados os pensamentos na cabeça de Joanna, que ela achava-se sem direção. Não que lhe faltasse um destino, ele existia, embora não pudesse ser visto pela mulher ensimesmada com ponderações desencadeadas e outras imagens que assaltavam sua concentração. Acabou por acreditar que não sabia para onde ir, o que lhe deixou ainda mais confusa e inerte, querendo o nada, tão exausta que estava com uma vida preenchida com o vazio do sentido. Joanna não cogitava qualquer solução para se desvencilhar daquele emaranhado sombrio e mal cheiroso em que ela tinha incautamente mergulhado, não se achava digna, não via dignidade em acordar e dormir, no entanto Joanna acordava e dormia apesar da falta de vontade. Numa das vezes em que acordou, lembrou-se de ter dormido mais profundo que sua mente acelerada permitia, e gostou de ter despertado sem o cansaço habitual. Percebeu que queria mais noites daquelas e despertares leves. Decidiu enfim tomar uma decisão mesmo sem saber o que seria dela dali por diante. A moça não parecia se importar, posto que estava acostumada a crer no nada, e resolveu, pela primeira vez, a olhar em volta. Viu a cidade acontecendo, vidas passando para todos os lados, criações ganhando corporeidade, cheiros melhores que o seu, viu de tudo até se esquecer de si, entrou na padaria e pediu um café. 

Texto: Danielle Arantes Giannini 
Ilustração: Nat_.

A ciência das condutas

O que difere o apaixonado Werther de minha pessoa é o sentido da vida

1. Devo continuar? Wilhelm, amigo de Werther, é o homem da Moral, ciência certa das condutas. Esta moral é de fato uma lógica: ou isto ou aquilo; se escolho (se marco) isto, então, de novo, isto ou aquilo: e assim por diante, até que, dessa cascata de alternativas, surja enfim um ato puro – puro de todo arrependimento, de todo tremor. Amas Carlota: ou tens alguma esperança, e então ages; ou não tens nenhuma, e então renuncias. Tal é o discurso do sujeito “sadio”: ou, ou. Mas o sujeito amoroso responde (é o que faz Werther): tento me esgueirar entre os dois membros da alternativa: quer dizer: não tenho nenhuma esperança, mas mesmo assim…Ou ainda: escolho obstinadamente não escolher; escolho a deriva: continuo. 

Roland Barthes – Fragmentos de um Discurso Amoroso

Conduta. Atitude. Ação. Comportamento. Postura. Condição. Condução de mim. A conduta do outro pouco se me dá. Desconheço a condição de quem quer que seja. A mim cabe o peso de conduzir-me, eis o obstáculo para meu livre-arbítrio. Rédeas. Ou posso optar por não agir, congelo na não decisão, o oposto de atitude. O que muda? Nada muda. Mudar é ação. Não agir é afrouxar o corpo e fazer pesar o existir. Minha conduta é escolha, minha escolha é risco, meu risco é condição, então ajo. Agir conforta. Não agir pesa, inquieta e aturde. Todo corpo acostuma-se a não agir ou a agir conforme o hábito. Luto internamente pelo agir, mesmo quando temo e escolho a deriva, como o jovem Werther. O que difere o apaixonado Werther de minha pessoa é o sentido da vida; para ele, mergulhado na paixão que estava, só havia sentido poder estar com a amada. Vejo sentido por toda parte, essa é minha condição, o que não me livra da angústia diante de alternativas – fúteis – do que fazer e do desejo de ser pragmática. 

Danielle Arantes Giannini