Dons como sinônimo de vida realizada

Fique alerta e evite bloqueios criativos

sem palavras

Existem coisas, coisas impalpáveis, que entopem as vias do pensamento. Com sua imaterialidade, obstruem a passagem das ideias e nenhuma palavra se conectar a outra, numa confusão sem fim, sem sintaxe nem prosódia. Quando essas coisas-obstáculos surgem, e acontece de repente, só resta a resignação. Pode procurar a cura em Camões, Pessoa, Barthes ou quem quer que seja, que não vai encontrar solução. A não ser esperar. Ajuda olhar para o céu, se lua clara houver, porém sem garantia. Fui acometida por esse entrevero e cometi o disparate de me desesperar. Só aumentou a gravidade do caso. Tentei uma saída sentando-me debaixo de uma árvore coberta por folhas verdes que não caíram no outono, na esperança de me inspirar no espécime teimoso que burlou as estações do ano, sem sucesso. Por fim, desisti. E tendo desistido, aquelas coisas se desinteressaram de mim, uma a uma, silenciosas, morosas, pesadas, foram saindo de algum lugar dentro de mim no intento de atingir outra vítima. Talvez algum pessimismo tenha sido a causa desse infortúnio que me acometeu, alguma ansiedade talvez, uma tristeza que me tomou a imunidade das ideias. Por isso esteja alerta, otimista, feliz, altivo, se não quiser ser atacado por essas coisas que andam por aí.

Danielle Arantes Giannini
Imagem: Banco de imagens Pexels.com

Enquanto redigia essas linhas, percebi que as coisas estavam incomodadas, acotovelando-se para sair de mim atrás de um outro corpo distraído com as vicissitudes da vida. Cuidado!

Finalmente Gertrudes

Esperou tanto Gertrudes, que quase desistiu. Eu estava ocupada demais perscrutando minha própria alma e me esqueci dela. Como tem paciência em abundância, a mulher não arredou pé até eu voltar de uma viagem longa dentro de mim, pois ela mesma sabia que sua história era bonita.
Gertrudes mulher, mãe, costureira, apreciadora de livros de romance. Adorava histórias de amor, embora nunca tivesse vivido uma. Não por falta de vontade, mas por não ter encontrado um homem que lhe fizesse se sentir Gertrudes. Até conheceu um rapaz aqui, um moço ali, tão cansativos! Gertrudes encomendou-me um pequeno conto em que coubesse toda sua vida, porém assegurei-lhe de que seria impossível por ser quem ela era, resposta que não lhe satisfez. Decidi ceder e dar-lhe algumas poucas linhas para contar um único acontecimento, ela escolheria. Escancarou um sorriso no rosto a mulher, que parecia estarem saltando os dentes para fora da boca. Pôs a contar, falando rápido e sem respirar, eu entendia com esforço o atropelo de palavras que ela dizia, e mesmo assim me emocionava.
Gertrudes não narrou nenhum feito maravilhoso, não confessou qualquer intimidade, disse que não tinha interesse nisso. O que a mulher pediu que eu escrevesse foi que nasceu de Dona Maria Quitéria, mãe de cinco filhos, que a amou, alimentou, mostrou o caminho da honestidade e partiu. Só isso, Gertrudes? Ora, por que eu haveria de querer mais? Só isso é a maior riqueza da minha vida, o resto todo vem disso, e você acha pouco? Coloque isso nas suas linhas, por favor, que fico agradecida demais.  Assim será feito, Gertrudes, obrigada por esperar.
Terminei de escrever um tanto embolada no pensamento porque me demorei tanto olhando para meus atropelos, que custei a perceber que estava diante de alguém realmente feliz.

Danielle Arantes Giannini

Inconstância

Sua vida é conduzida por mim,
Decido quem você é hoje
E quem será amanhã
Você não me controla nem me cala
Sou indomável
Meu nome é inconstância
Sou eu quem faz sua rotina ser uma hoje
E outra amanhã
Movimento seus pensamentos
Transformo seus sentimentos
E o transformo em humano
Sou a mudança
Sou o nunca e o sempre
Sem controle nem previsão
Nada me intimida
Porque não sou fórmula fixa
Sou ação
Minha missão é transformar você
E mudar todas as coisas da vida
E todas as coisas do mundo
Estou aqui para cortar suas amarras
Quero arrombar o cadeado do apego
Para libertá-lo da dor
Não adianta lutar contra mim
Eu sou a vida
Vim para abalar suas convicções
Semear a dúvida
Deixar uma cisma em você
E depois me alegrarei com sua transformação
Você não se livrará de mim
Nem mesmo depois de cerrar os olhos
Porque também sou a impermanência
E onde você estiver,
Lá eu estarei.
Venha cá, segure minha mão,
Caminhe comigo
Vou lhe ensinar o que é liberdade
Estaremos juntos até na eternidade
Não se atrase chamando os doutores,
Sábios e entendidos
Eles também seguem as minhas leis
Porque você, os doutores, os sábios, os entendidos
E os ignorantes
São todos meus tutelados
Nada os distingue
Nem títulos,
Nem moedas,
Absolutamente nada
Sou a mesma para o rico e para o pobre
Estou no caminho do justo e do injusto
Mas hoje eu quero você
Vim me apresentar
Não lhe farei mal algum
Confie em mim
E encontrará o caminho que leva a você mesmo
Você nada pode se não for através de mim
Sou a força que rege a natureza
Faço surgirem estrelas, planetas
Sóis de todas as grandezas
Provoco chuvas e mexo na superfície do solo
Componho músicas com o vento
Moldo ondas perfeitas e imperfeitas
Acredita agora que você nada será sem mim?
Então aceite meu convite
Caminhe comigo nessa tarde de sol
Amanhã andaremos pela chuva
E depois lhe trago um pouco de brisa
Se quiser, pinto um arco-íris para você admirar
Só não me peça para ficar parado
Porque sou a inconstância
E vou levá-lo para onde eu for!

Danielle Arantes Giannini 
Texto publicado originalmente em https://vivenciaseganhos.wordpress.com em 8 de dezembro de 2018

Joanna decide tomar café

Eram tantos e desencontrados os pensamentos na cabeça de Joanna, que ela achava-se sem direção. Não que lhe faltasse um destino, ele existia, embora não pudesse ser visto pela mulher ensimesmada com ponderações desencadeadas e outras imagens que assaltavam sua concentração. Acabou por acreditar que não sabia para onde ir, o que lhe deixou ainda mais confusa e inerte, querendo o nada, tão exausta que estava com uma vida preenchida com o vazio do sentido. Joanna não cogitava qualquer solução para se desvencilhar daquele emaranhado sombrio e mal cheiroso em que ela tinha incautamente mergulhado, não se achava digna, não via dignidade em acordar e dormir, no entanto Joanna acordava e dormia apesar da falta de vontade. Numa das vezes em que acordou, lembrou-se de ter dormido mais profundo que sua mente acelerada permitia, e gostou de ter despertado sem o cansaço habitual. Percebeu que queria mais noites daquelas e despertares leves. Decidiu enfim tomar uma decisão mesmo sem saber o que seria dela dali por diante. A moça não parecia se importar, posto que estava acostumada a crer no nada, e resolveu, pela primeira vez, a olhar em volta. Viu a cidade acontecendo, vidas passando para todos os lados, criações ganhando corporeidade, cheiros melhores que o seu, viu de tudo até se esquecer de si, entrou na padaria e pediu um café. 

Texto: Danielle Arantes Giannini 
Ilustração: Nat_.

A desejosa

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Desejou tanto, que sua vida era só desejo, aquele mesmo, único e intransferível, e acrescento, irrealizável, pelo menos para ela. Do que resultou uma vida maldita, com oscilações de esperança e frustrações. Ela não se permitia imaginar que seu desejo era impossível de se concretizar, por isso sofreu na vida. Agarrou-se ano nada. Sonhou durante a vida toda em ser quem jamais seria, ter o que não teria, tudo porque ouviu alguém dizer que é preciso sonhar alto. Assim o fez e não teve tempo de viver.

Danielle Arantes Giannini

Banco de personagens: O Inspetor do Museu

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Conheci um senhor na cadeira de espera dos Correios, muito conversador, simpático, aparentando nenhuma idade específica; parecia um rosto conservado. Estava demorando para chamarem a senha dele, e a minha também, por isso o homem pôs-se a falar comigo sem enfado ou embaraço. Não perguntou da meteorologia, como é de praxe entre desconhecidos que desejam matar o tempo ou preencher um vazio constrangedor. Ele foi logo perguntando se eu conhecia o “museu sei lá das quantas”. Não guardei o nome do museu mais por um lapso auditivo do que por desinteresse. Respondi que não. O meu novo amigo de espera não se conteve. Apresentou-se como Inspetor do Museu! Fiquei pensativo na hora, não sabia bem se havia inspetores em museus, porém não ousei fazer questionamentos porque um inspetor devia ser uma figura de respeito. Creio que se intitulava assim porque a palavra carregava algo de importância. E era, conforme ele próprio me contou. Das tantas a tantas horas da noite, era ele quem vigiava centenas e centenas de obras de sabe-se lá que valor que residiam ali no salão do acervo, todas obras valiosas, segundo o Inspetor, esperando a vez de serem escolhidas por algum curador para estrelarem uma exposição. Provavelmente era o segurança, pensei eu, mas não estava disposto a insistir nos esclarecimentos porque o homem se bastava de tanto orgulho de seu trabalho. Talvez fosse uma atividade carregada de tédio e dores nas pernas, só que o “inspetor” via uma relevância tão contagiante naquele afazer diário, que eu também fui contagiado pela aura imponente da criatura sentada ali no banco de espera da agência. Saí de lá, quase hora depois, de coluna ereta, cabeça erguida, certo de que ganhara meu dia, conversando com uma criatura de tamanha importância.

Danielle Arantes G.

Galinhas invisíveis, por Meire de Bartolo

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Não quero criar suspense, mas não foi logo de cara que a vi. Estava lá no alto da prateleira, acho que sentada. Só consegui ver uma de suas asas e me pergunto se tinha outra. Seu olhar era de uma languidez que nunca pensei que uma galinha pudesse ter. E o bico? Bem, não tinha bico. No seu lugar, um sorriso desdenhoso que parecia denunciar que ela tudo via e não era vista. Mas eu a vi!

   A galinha era feita de uma chita espalhafatosa multicolorida e estava enfeitando uma loja de produtos naturais. Enquanto eu pagava a conta dos vários pacotinhos de guloseimas inocentes que escolhi, olhei para cima e lá estava ela. Ri, espontaneamente, talvez por achar um despropósito encarar uma galinha daquele tipo olhando bem para mim. O vendedor incluiu-se na cena e me disse:

– Engraçado, são as crianças que veem a galinha. Os adultos nunca reparam nela.

“Engraçado”! Fiquei feliz com o comentário dele. Criança, estou longe de ser, mas não pude deixar de me lembrar do que aconteceu comigo no dia anterior.

Estive na casa dos meus pais e, por acaso, encontrei uma gaveta cheia de fotos de tempos diversos. Uma delas era da minha primeira comunhão. Lembrava desse dia, mas tinha me esquecido da foto. Lá estava eu com um casaquinho branco com um distintivo da playboy (não imagino o sentido disso!) e uma vela acesa nas mãos. Cabelos naturalmente ondulados que não existem mais, nem os “ondulados”, nem o “naturalmente”, e um olhar de quem acreditava estar no lugar certo, fazendo a coisa certa. Lembro-me de que dificilmente eu gostava de ver uma foto minha, fosse de criança, adolescente ou adulta. Sempre achava defeitos. Meus olhos eram pequenos, minha boa era inexpressiva. O nariz era ok, mas sem personalidade. Rosto redondo, meio bolachudo e o cabelo…ah o cabelo! Quando não existiam shampoos queratinizados, escovas progressivas, botox…ele era…Bem, era o que era!

Desta vez foi diferente. Olhei para a foto e, sem hesitar, resolvi cuidar daquela menina. Gostei de olhar a imagem de sua sinceridade e pureza. A garotinha pouco sabia da vida e, por isso, era tão ela mesma. Não senti pena, senti amor. Resolvi adotá-la, e para tentar protegê-la, tratei de guardá-la rapidinho dentro de minha pequena bolsa. Ainda bem que ninguém viu porque eu não saberia explicar por que queria levá-la embora.

Na noite do domingo, já em casa, tirei-a do abrigo da bolsa e a levei para a cama comigo. Nossos olhares se cruzaram e revelaram se amar mutuamente.

Fizemos um pacto de cuidarmos uma da outra por amor e admiração recíproca e prometemos nunca mais nos separarmos. Fomos dormir assim, lado a lado, serenas e realizadas como nunca.

Curiosamente, na manhã seguinte, eu vi aquela galinha, ou melhor, a menina que sou a viu. Não é mais ela ou eu. Somos uma só agora.

Acredito que as galinhas não me serão mais invisíveis daqui para frente.

Texto gentilmente cedido por Meire de Bartolo

 

Antes de escrever

antes de escrever

Se existe uma coisa cheia de caprichos, é a escrevinhação. Você pode ter a prepotência de pensar que é só chegar, sentar, abrir o caderninho de notas ou ligar o computador e pronto, palavras vão brotando do nada, todas na sequência certa, encadeadinhas, fazendo sentido. Ilusão isso. Escrever é uma tarefa que não divide a atenção com nada. Ou o sujeito de concentra no que vai escrever ou não escreve, simples. Vou antes até, quando você decide escrever e quer fazer isso em qualquer lugar, com pessoas, com barulhos, com movimento, com lista de compromissos na cabeça, com isso com aquilo…nada feito. Parece que palavra, para nascer, quer o ambiente preparado só para ela, sem coisas que dispersam. Não se pode prestar atenção em nada mais a não ser nas palavras que vão para o texto. As conexões cerebrais só acontecem com o devido preparo. Ideias que foram sendo maturadas, estilo que foi programado, metas estipuladas, tudo sob controle, para que possa nascer o texto, até mesmo quando é a vez do improviso, esse senhor mimado que não surge do nada, só aparece em terreno adubado. Mas esse é outro assunto. Quero falar daqueles dias que o textos que quer (ou precisa) surgir fica engasgado e o mundo parece que conspira contra. Não dá para lutar. É hora de se render, deixar as coisas se acalmarem, esperar o agito acabar e então invocar as tágides do Tejo para por-se a trabalhar. Medir força com as palavras é bobagem!

Danielle Arantes Giannini

Venha cá, inspiração querida!

cafe-inspira

Reservei parte do meu dia para escrever. Livrei-me dos compromissos na rua, cheguei em casa, vi bagunça espalhada e fui dar uma ajeitadinha. Casa limpa areja a mente. Bem, como havia uma pilha de livros e papéis sobre a mesa, achei por bem guardar o que não era urgente e jogar fora o que não prestava. Já que fiz isso na mesa, resolvi fazer também no escritório todo, assim rapidinho. Três sacolas de papéis picados depois, uma hora e meia tinha se passado. Ótima a sensação de leveza. Como é bom desvencilhar-se de inutilidades! Só que depois doeram-me as pernas, veio a fome, mensagens de amigos distantes pelo celular, banho relaxante e finalmente chegou nosso momento, eu e ele, o teclado do computador. E nada. Zero inspiração. O avançado da hora, pra mais de onze e meia da noite, não me recomendava nada à base de cafeína. Era eu e a tela branca, eu e as palavras fugidias. As palavras resolveram zombar do meu cansaço, cruzaram todas elas as pernas e recusaram-se a me servir. Quem sabe ler umas páginas ajuda. Estou com algumas leituras abertas: Manoel de Barros, Cecília Meireles, um livro sobre a Doutrina de Buda e uma obra sobre psicologia espírita, de Joanna de Ângelis. A ver de onde vem a inspiração, esta que me renega justo hoje que me guardei para ela!
E o celular não para de fazem plim-plim…

Danielle Arantes Giannini

Se a mente estiver negativa, pode ser ruim…ou não! Leia em https://doreseganhos.wordpress.com/2017/01/18/tirando-vantagem-das-negatividades/